sábado, 5 de novembro de 2011

MARIA REGINA MONGIARDIM - POTUGAL

VASANT VIHAR - NOVA DELHI
Despertam-me ruídos familiares, que ouço todas as manhãs, quando o sol já entra a rodos pelas vidraças das janelas, inundando de luz e laivos de poeira incandescente, suspensa no ar, os compartimentos da casa.

Oiço um sino, uma buzina, campaínhas de bicicleta e um pregão, que em voz ininteligível se repete, anunciando não sei o quê de bem popular, a julgar pela clientela que atrai.

É cedo ainda.
Mal o dia começou, já a agitação se assenhoreou da cidade, do bairro, do quarteirão, da rua onde vivo. O mundo gira lá fora; há gritos, há movimento, há cheiros, há cores...

Olho através das vidraças. Observo o que me rodeia. Sinto este exotismo que me penetra nos sentidos.

Pessoas, animais de várias espécies, carros, motas e bicicletas misturam-se, sem ordem, nem regras, em amena coexistência e plena aceitação.

Aqui e ali grupos de homens tisnados, à conversa, sem pressas e indolentes. Sentados no chão uns, em cadeiras outros, ainda outros de cócoras, de pé os demais.
Entre esses grupos, posso reconhecer os porteiros, seguranças, motoristas e criados, preparando-se para mais um dia de trabalho igual aos outros, nesta cidade abrasadora, desta Índia incandescente.

Perto, com um velho carro de mão transformado em banca de venda ambulante, um homem magro, de tez escura e cabelo vermelho da henna, vai distribuíndo copos de plástico cheios de um líquido verde, extraído de plantas frescas, viçosas, dispostas num balde de plástico, de cor indefinida já esmaecida pelo tempo e falta de limpeza.

Nas ruas circundantes mais próximas, várias mulheres sem idade, agachadas ou de cócoras, limpam das ervas daninhas os passeios esburacados e poeirentos, enquanto outras, encurvadas, vão varrendo as bermas, com curtas vassouras improvisadas feitas de ramas das árvores que lhes fazem sombra, juntando em pequenos montes um lixo que não recolhem.

Perto rondam as vacas sagradas, que irão aproximar-se para procurar alimento, destruindo esses montículos de lixo. As suas bostas, que também ninguém recolhe, alcatifam as ruas, os passeios, os pátios de acesso aos mercados, onde convivem com os alimentos à venda.

Um pouco mais longe, outras mulheres, mais jovens, envoltas nos seus brilhantes saris multicolores, carregam sobre as cabeças erguidas canastas cheias de pedra, tijolos, areia e entulho das obras em que laboriosamente trabalham, enquanto com o seu braço disponível estendido vão orientando os passos indecisos dos seus filhos, quase ainda bebés. Verdadeiros exércitos de mulheres coloridas entram e saem por entre os andaimes de bambú dos prédios em construção.

Mais além, uma mísera barraca esventrada exibe, publicamente e sem pudor, pobres camastros semi-destruídos, um monte de roupa suja, umas panelas negras e amolgadas, uns tristes trastes...

E a seu lado, na berma do passeio, um homem lava os dentes, enquanto outro, com um pequeno púcaro, vai derramando água pelo tronco nu, num asseio habitual e possível nestas precárias condições.

Mais adiante, junto ao tronco de uma frondosa árvore, que serve de suporte a um pequeno espelho corroído e baço, uma velha cadeira de barbeiro, onde um cliente se senta e corta o cabelo.

É este o cenário e o ambiente intenso, de cada manhã, num exclusivo bairro de expatriados e de indianos da classe média-alta em Nova Deli: Vasant Vihar.

1 comentário:

  1. Muito bom relato. Está uma narrativa muito fluida que consegue, sem cair no banal, aludir a imagens presentes numa cidade distante da ocidentalidade.

    Há uma cadência própria neste texto. Está longe de ser um texto sensacionista e cair no excesso das sensações reportando o leitor para esse mundo. Ao invés, este texto consegue manter a distância q.b. do leitor e simultaneamente oferece-hle uma descrição peculiar num retrato bastante subjectivo. Os meus parabéns

    Diogo Godinho

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