ALBERTO POMBO - GALIZA
"Tingida de azul violência"
Nasceu no meio de uma madrugada tingida de azul violência. Servos
fiéis, os cães ladravam como prolongação dos fardados que enchiam o céu
de palavras limpas berrando o nome da mamã. As luzes davam medo. Cada
vez que um brilho cerúleo nos tocava a pele era como um galopar escuro
de metralhada pelas costas. Mamã também fugia do seu pânico de nunca
mais ser. Era a última evasão a ela própria e tinha comprado a liberação
espetando umas tesouras de costura no meio daquele homem asqueroso. Eu
tinha 7 anos e uma espiral infinita de horror e rancor nos olhos.
Furtivas traçámos um ziguezague pelos pátios cúmplices das vizinhas até
chegar aos pés da casa da mulher que curava as sombras.
A cidade crescia aos nossos olhos como um labirinto com boca negra de mal infectuoso
e portas fechadas. Hipócrita com aquelas caminhadas de normalidade pela
avenida que às vezes tinham dado cama de pedra dura para nós. Às poucas
horas começou o nascimento nos arrabaldes da liberdade. A minha irmã
viu a primeira claridade naquele tubo de luz da cozinha cheio de moscas
enquanto as mãos dos fardados punham música de tronos batendo nas portas
daquela casa. No que fora o nosso tecto, o nojento já devia ter enchido
o quarto de sangue e com certeza continuaria berrando como o porco que
era deixando a vida aos poucos. A mamã morreu naquela mesa que cheirava a
gordura de chouriço e a vida nova e para a minha irmã, a luz durou
pouco. A música de trovão terminou e começou o inverno.
Não
deviam ter passado mais de duas ou três semanas e já estávamos na casa
do nosso pai novamente. Aquele prédio mudo era parceiro do maltrato e
senti nojo ao pôr os pés naquele chão de caras conhecidas. No colo dos
senhores da justiça, a minha irmã fechou os olhos antes de ver o rosto
duro e impune daquele monstro.
Neste instante de caneta, tenho
12 anos e também eu tenho as mãos fortes para pegar nas tesouras
justiceiras e orgulhosas de mamã.
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